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Manifestantes com boneco de Jair Bolsonaro durante protesto no Rio de Janeiro. Foto de Ricardo Morares / Reuters

Se você odeia o Bolsonaro então vai amar o socialismo

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Nas últimas décadas a direita atacou o projeto socialista com distorções e fake news. Mas Bolsonaro é uma figura tão abjeta que sua impopularidade o tornou um aliado involuntário do socialismo: hoje, milhões de jovens querem saber o que realmente significa essa palavra que os bolsonaristas tanto odeiam. Este livro é para derrubar mitos e mostrar porque o "espectro vermelho" continua assombrando a classe dominante.

Extraído do livro ABC do Socialismo, escrito pelos colaboradores da Jacobin (Autonomia Literária, 2022)


Nunca antes na história desse país um presidente falou tanto de socialismo. Presente durante toda a sua campanha, e aludido inclusive no discurso de posse, o socialismo não sai da boca de Jair Bolsonaro. Com a proximidade da eleição, a “ameaça socialista” se mantém uma presença constante, ainda que fantasmagórica, em suas falas e atos. A julgar pela verborragia inquieta do capitão e seus fãs, o espectro vermelho volta a assombrar. O socialismo, ao menos nas mentes assustadas da extrema direita, continua vivo – e perigoso! – três décadas depois de ter sido declarado morto.

Esse tipo de paranóia não é exatamente nova. Qualquer um que tenha ao menos começado a folhear o famigerado Manifesto Comunista, sabe que Karl Marx e Friedrich Engels abrem o panfleto fazendo chacota daqueles que enxergam comunismo por todas as partes. E, contudo, tanto aqui quanto ali, o medo de assombração não é mero delírio subjetivo, mas aponta para um fato da realidade social: a inerente fragilidade da ordem burguesa e a possibilidade, sempre presente, de que decidamos viver em comum de modo distinto. Nesse sentido, a retórica da ameaça socialista é mais do que apenas uma manobra diversionista – é expressão da ansiedade efetivamente sentida pelos conservadores de que, sendo a sociedade de classes um barril de pólvora sob o iminente e inafastável risco de ir pelos ares, a crise social e política pode, eventualmente, ser resolvida em favor dos debaixo.

Faz sentido que a classe proprietária fique assustada perante esse possível desfecho, afinal, para um burguês, a possibilidade do fim do mundo burguês é experimentada como o fim do mundo – uma catástrofe integral e irredimível. Por isso mesmo, para essa classe o socialismo só pode aparecer como uma versão mais sinistra da própria crise capitalista em curso. O que deixa a nós, socialistas, na curiosa situação de sermos acusados de querer materializar todas as desgraças que… já existem sob o capitalismo! Não deixa de ser irônico quando uma figura grotesca como Bolsonaro afirma que se não fosse ele para tirar o Brasil da “beira do socialismo” o destino do país seria a fome e a falta de liberdade, como se não fosse seu governo o principal inimigo da liberdade e o maior responsável pela tragédia humanitária que engrossou a fila dos ossos e encurtou a expectativa de vida do trabalhador brasileiro.

“Bolsonaro tem toda razão de não gostar de nós, os socialistas. Afinal, somos precisamente o contrário de tudo o que ele representa.”

Talvez Bolsonaro seja hoje um dos maiores aliados involuntários da nossa causa: uma criatura tão abjeta que qualquer coisa da qual fale mal acaba se tornando instantaneamente mais simpática. A crescente impopularidade de Bolsonaro, em especial entre a juventude trabalhadora, na qual é quase universalmente desprezado, oferece uma ótima oportunidade para os socialistas. O rótulo “socialista” não deve, portanto, ser recusado defensivamente, como se fosse uma injúria. Deve ser exibido, orgulhosamente, como uma insígnia de honra.

Ao invés de tentarmos acalmar os ânimos, insistindo que somos fracos demais para representar qualquer perigo, devemos proclamar que a “ameaça socialista” é tão efetiva quanto temem nossos inimigos em seus piores pesadelos: uma vez que a sociedade existente é contrária aos interesses materiais da vasta maioria das pessoas que nela participam, a emergência de um massivo movimento democrático que “mude o mundo de base” é sempre provável, e pode acontecer a qualquer momento. Bolsonaro tem toda razão de não gostar de nós, os socialistas. Afinal, somos precisamente o contrário de tudo o que ele representa, e queremos de fato derrubá-lo. Aliás, não só ele, como também as condições que o tornaram possível: queremos ir à raiz, para dar conta, lá embaixo, dos problemas e impasses profundos dos quais o próprio Bolsonaro é apenas um sintoma particularmente mórbido.

O que é o socialismo?

É absolutamente normal, esperado, e mesmo inevitável, que a classe proprietária forme para si uma desfigurada imagem do socialismo e tente vender seus temores particulares como se universais fossem. Afinal, trata-se da classe que queremos privar de seu poder, retirar do posto de classe dominante. Todo problema é que, enquanto classe dominante, é justamente quem tem a sua disposição os meios para disseminar sua própria perspectiva de classe, e os usa, claro, sem nenhuma hesitação ou escrúpulo.

É apenas do ponto de vista dos patrões, desenvolvido intelectualmente por seus ideólogos mercenários, que o capitalismo aparece como a ordem natural das coisas, eterna e imutável. É dessa perspectiva, muito particular e interessada, que a sociedade de mercado aparece como o fim da história. Há uma classe – minoritária, porém poderosa – que tem interesse em nos fazer acreditar que se o grande capital não seguir reinando, business-as-usual, o que nos restará é o apocalipse, ou o inferno na Terra. E é para essa classe que um futuro sem capitalismo só pode ser sombrio e assustador, senão simplesmente inconcebível. 

Como, em situações políticas normais, as ideias dominantes tendem a ser mesmo as ideias da classe dominante, as ideias dominantes sobre o socialismo naturalmente tendem a ser aquelas menos lisonjeiras ao socialismo. Cabe, portanto, aos socialistas travar a batalha das ideias, para que o socialismo não seja definido na arena pública por seus inimigos. E se esse é o objetivo, devemos ser capazes de nos comunicar da forma mais precisa e direta possível, desfazendo mitos, dissolvendo confusões, perfurando a grossa camada de propaganda que se assentou sobre o senso comum.

“O socialismo – nisso Marx acertou em cheio – não deve ser visto como uma espécie de ‘estado ideal’, mas sim ‘o movimento real que supera o estado atual de coisas’.”

Para ir direto ao ponto: o socialismo é o projeto político da classe trabalhadora. Sua eficácia se assenta no poder coletivo que a classe trabalhadora é capaz de exercer quando organizada. Seu horizonte são as necessidades e desejos da classe trabalhadora. O socialismo será o que a classe trabalhadora quiser que seja; sua premissa é que as pessoas comuns, essa vasta maioria que tem que ganhar a vida trabalhando, podem construir coletivamente uma alternativa de sociedade, para desfrutar de uma vida mais humana. Se a classe trabalhadora é capaz de ter um projeto político autônomo, então ela deve desenvolver uma visão própria de como as instituições sociais deveriam ser e exercer a crítica prática ao transformá-las conscientemente. 

O socialismo – nisso Marx acertou em cheio – não deve ser visto como uma espécie de “estado ideal”, um formato pré-estabelecido no qual tentamos forçar a realidade, mas sim “o movimento real que supera o estado atual de coisas”. O Manifesto é ainda mais explícito, quando enfatiza que esse movimento precisa ser “o movimento autônomo da imensa maioria em proveito da imensa maioria”.

Esse projeto, voltado para o futuro, se orienta para a construção do “autogoverno dos produtores livremente associados”, uma sociedade na qual não haja nem opressores nem oprimidos, nem exploradores nem explorados, e cada indivíduo possa ter acesso às condições materiais para seu livre auto-desenvolvimento pleno. A organização racional do processo produtivo e a regulação consciente do metabolismo entre a sociedade e o resto da natureza são as únicas maneiras de garantir uma vida de abundância e liberdade não apenas para poucos, mas para todo mundo.

Como fatalmente a pequena minoria que hoje se beneficia com as grotescas desigualdades produzidas pelo capitalismo tem todo interesse em usar dos vários privilégios que desfruta para manter e ampliar seu poder, aqueles que querem que a classe trabalhadora se converta em classe dominante precisam levar a sério os problemas da estratégia, ou seja: o problema de como construir poder social desde baixo. O coração da estratégia socialista é, portanto, o que fazer para diminuir o poder dos proprietários e aumentar o poder dos proletários.

Se vamos falar a sério sobre “democracia”, em qualquer sentido substantivo, sua realização passa pela conquista do poder político pela classe majoritária. A classe trabalhadora, além de ser ampla maioria nas sociedades burguesas modernas, é a classe que está melhor posicionada estrategicamente no processo produtivo para subvertê-lo. Por sua posição econômica, a classe trabalhadora pode infligir dano aos barões do capital exatamente onde mais dói: no bolso. Se ela para, tudo para. Aí está a fonte do seu poder coletivo de barganha.

“O coração da estratégia socialista é, portanto, o que fazer para diminuir o poder dos proprietários e aumentar o poder dos proletários.”

Para que o capital conseguisse dominar o campo e construir as grandes cidades, promover o avanço colossal da indústria e do comércio mundial, e para que a engrenagem da acumulação continue a girar a cada dia, é necessário que milhões de homens e mulheres acordem todos as manhãs e saiam para trabalhar. Sem os trabalhadores nada do que conhecemos existiria. A classe que põe o mundo para andar é também a que pode mais radicalmente transformá-lo – é a classe que carrega o futuro nas mãos.

Socialismo ou barbárie

O grave problema é que o capitalismo não vai sobreviver por muito tempo sem nos empurrar para a barbárie. Como nos alertou Rosa Luxemburgo, o socialismo não é o destino inevitável da humanidade, mas é o único destino que não leva ao abismo. Na mesma proporção que desenvolve as forças produtivas, o capitalismo também amplia as forças destrutivas e a capacidade irracional de autodestruição da humanidade.

Para cada salto tecnológico, se dá um aumento na concentração de riquezas do 1% e na exploração dos outros 99% dos seres humanos. O enriquecimento insano dos novos oligarcas globais, como Mark Zuckerberg ou Jeff Bezos, são a prova viva disso. Para cada novo trabalhador que se cadastra nas fileiras de exploração da Amazon ou de qualquer aplicativo de entrega, os oligarcas do capitalismo de plataforma, escondidos detrás da exploração algorítmica, aumentam suas mansões e incrementam a frota de jatinhos. 

A acumulação desenfreada, às custas de uma taxa de exploração crescente, não pode ser infinita. Não é à toa que o capitalismo, em seus poucos séculos de existência, nos levou a tantas crises econômicas devastadoras e guerras imperialistas tão sangrentas quanto sem sentido. Em nossa época, a contradição entre o impulso capitalista à acumulação sempre ampliada e os limites naturais do planeta nos empurra inexoravelmente a uma tragédia anunciada: a emergência climática e a catástrofe ecológica. A produção regulada pelo lucro, e não pelas necessidades humanas, nos deixa de presente uma calamidade que se abaterá por toda a humanidade. Mas não se enganem: seus efeitos estão longe de serem bem distribuídos – aqueles que lucraram produzindo o problema são os que concentram mais recursos para se proteger das consequências.

“Os limites naturais do planeta nos empurra inexoravelmente a uma tragédia anunciada: a emergência climática e a catástrofe ecológica.”

Por outro lado, a desigualdade de riqueza se converte facilmente em desigualdade de poder, incluindo o acesso desigual ao sistema político. Essa dinâmica viciosa torna-se especialmente explícita nas últimas quatro décadas do período neoliberal: na medida que os ricos se tornam mais ricos, cresce o poder dos bilionários, e os governos são cada vez mais sequestrados pelos interesses privados. A classe proprietária faz a festa: expropria e privatiza o que for possível, reduz os direitos sociais e os serviços públicos, utiliza do Estado, inclusive coercitivamente, para atacar a capacidade de organização coletiva dos trabalhadores. É como se o neoliberalismo se esforçasse para tornar verdade a invectiva ácida de Marx de que, em condições capitalistas, os governos não passam de comitês de gestão dos negócios comuns da burguesia. Esse assalto à luz do dia, como não poderia deixar de ser, desmoraliza a democracia liberal, e abre espaço para a extrema direita.

O neoliberalismo, na medida em que cria uma sociedade de indivíduos atomizados e esvazia a democracia com a submissão crescente do poder político ao poder econômico, torna o terreno social fértil para a ascensão de movimentos conservadores autoritários.

É esse o mundo em que você quer viver? Um planeta em chamas, com eventos climáticos extremos cada vez mais frequentes, ilhas de luxo privadas em meio a oceanos de pobreza, magnatas carregando a política no bolso enquanto o fascismo ganha força explorando a ansiedade, o desespero e o niilismo gerados pelo próprio capitalismo? Será que não somos capazes de fazer algo melhor juntos?

Tudo para todo mundo

O socialismo não é coisa de outro mundo – é desse aqui mesmo. Não há nada de extremo ou fanático na ideia de uma sociedade sem classes. Se você parar para pensar, é puro bom senso. Por que uns deveriam passar fome, ou enfrentar a constante angústia de não saber se as contas vão fechar no fim do mês, enquanto outros vivem em mansões e passeiam em iates? Por que atividades predatórias que degradam a natureza e a saúde humana deveriam ser permitidas apenas para engordar o bolso de uns poucos? Por que a posse de dinheiro deveria permitir um ser humano mandar tiranicamente em outro? Por que as decisões que impactam a vida de milhões de pessoas deveriam ser monopolizadas por um punhado de proprietários? Não é um absurdo que tantos sejam atirados na miséria e na humilhação por não encontrarem vagas de emprego no mercado de trabalho, enquanto outros se matam de trabalhar em jornadas extenuantes e brutalizadoras? Como justificar racionalmente os excessos perdulários dos podres de rico acontecendo lado a lado de tantas necessidades humanas básicas não atendidas? 

Analisado friamente, como uma formação social contingente e historicamente situada, não como uma lei da natureza ou um fato bruto da realidade, o capitalismo aparece como realmente é: um sistema arbitrário, caprichoso, repleto de irracionalidades e desperdícios, e responsável por uma quantidade violenta de sofrimento humano desnecessário. Não seria muito mais razoável substituir a mão invisível e os deuses malucos do mercado, sempre sedentos de mais sangue, por uma alternativa humana, democrática e consciente? Por que não trocar o impulso cego de acumulação pelo planejamento democrático que garanta uma vida boa para todo mundo? Trabalhar menos, trabalhar todos, produzir para a satisfação das necessidades e compartilhar os produtos do trabalho coletivo – não parece uma orientação bem mais sensata e saudável?

“Ser socialista não é adotar um voto de pobreza, mas se dedicar à universalização da abundância.”

E se enganam também os que dizem que no socialismo as tecnologias permanecem atrasadas e não podem avançar. Imagine toda a energia humana despendida hoje em trabalhos de merda, na administração da opressão social, em serviços luxuosos para os bilionários, no controle dos pobres; agora imagine empregá-la num projeto comum, em benefício da maioria. Pense em todos os talentos e capacidades perdidos pela pobreza e falta de oportunidade; e então imagine toda essa força humana dedicada ao trabalho produtivo, projetando novas ferramentas e tecnologias que sejam de fato úteis e acessíveis para o conjunto da humanidade. 

Socialismo não significa igualdade frugal, ou um pauperismo democratizado. É um modo superior de sociedade, que parte dos avanços técnicos desenvolvidos no interior do capitalismo, mas os coloca a serviço de todos. Ser socialista não é adotar um voto de pobreza, mas se dedicar à universalização da abundância.

Os trabalhadores não gostam de viver na carência e na miséria. E estão certos: todo mundo merece do bom e do melhor. Ao contrário do que querem nos fazer acreditar, nada é bom demais para a classe trabalhadora. A coordenação racional do processo produtivo, o planejamento inteligente do investimento, o acesso universal à educação e à formação científica, a aplicação em larga escala de recursos para pesquisa tendo em vista desenvolver o intelecto geral da espécie, produzirá uma expansão qualitativamente nova das capacidades criativas humanas. E, enfim, a sociedade livre poderá escrever em sua bandeira: luxo comunal para todos, tudo para todo mundo.

“O desenvolvimento tecnológico pode nos auxiliar a dar finalmente o salto do reino da necessidade para o reino da liberdade.”

Se hoje os trabalhadores precisam conviver com o medo constante de se tornarem obsoletos, e substituídos por máquinas ou algoritmos, a ação coletiva democrática pode fazer das fontes desses temores um potencial de libertação. Se as máquinas podem produzir mais, por que não trabalharmos menos? Por que não pensar na abolição do trabalho como uma labuta sofrida e alienante? Se contarmos com um movimento de massas democratizante e uma estratégia socialista, o desenvolvimento tecnológico pode nos auxiliar a dar finalmente o salto do reino da necessidade para o reino da liberdade. Em vez de sofrermos de pesadelos com o desemprego tecnológico, podemos sonhar com o comunismo de luxo totalmente automatizado.

Socialismo é, portanto, e ao mesmo tempo, a ideia de que é preciso resolver nossos problemas imediatamente – pois os socialistas querem acabar com a fome hoje, aumentar nossos salários pra já, garantir nossos direitos agora – junto com a construção de um horizonte de transcendência do atual estado de coisas. É conquistar, por meio das lutas práticas cotidianas, reformas democráticas que melhorem as condições do povo trabalhador, mas também apontar para as possibilidades de um futuro transformado, sem capitalismo. O objetivo final é a definitiva abolição da sociedade de classes.

Socialismo no nosso tempo

Ser socialista não é algo que se possa fazer sozinho. O motivo é simples: não se trata de uma preferência estética, de um estilo de vida, ou das ideias que qualquer um pode ter individualmente em sua cabeça. Ser socialista é participar da construção de possibilidades de ação em comum, é estar engajado na composição de uma agência coletiva. Se o socialismo é o projeto político da classe trabalhadora, os socialistas são aqueles que estão ativamente envolvidos na construção de poder por parte dos oprimidos e explorados.

Uma vez que o capitalismo é uma realidade social em constante mutação, que precisa estar o tempo todo se revolucionando para continuar existindo, a formulação socialista precisa necessariamente acompanhar essas mudanças. Como o terreno de luta está em constante transformação, nosso esforço de mapeamento precisa, do mesmo modo, ser constantemente atualizado. Um bom mapeamento pode gerar boas estratégias; mapas obsoletos conduzem a intervenções desastradas.

Portanto, quando reivindicamos os clássicos da nossa tradição, como Karl Marx e Rosa Luxemburgo, não é, evidentemente, para dizer que já tinham todas as respostas – eles sequer tinham todas as perguntas. Mas para reconhecer que estamos sentados em ombros de gigantes: herdeiros de mais de um século e meio de uma trama contínua de esforços cooperativos de compreensão da realidade de uma perspectiva proletária militante, que interpreta o mundo a partir da luta, para transformá-lo. A melhor maneira de homenagear os que vieram antes de nós, e aos quais tanto devemos, é pensar de forma crítica e afiada: um bom diagnóstico aumenta as chances de vitória dos movimentos emancipatórios.

“O que os socialistas precisam fazer é afirmar que o povo tem razão em se revoltar, e a partir daí ajudar, de todas as formas possíveis, a converter a insatisfação privatizada em digna raiva coletiva.”

É por isso que os socialistas estão interessados em saber como o capitalismo da nossa época se organiza. Quais são as principais tendências da acumulação? Qual é a natureza técnica do trabalho? Como as diferentes formas de trabalho – com as suas especificidades em termos de logística, composição orgânica do capital, aplicação de ciência e da técnica – se dividem geograficamente e socialmente? E como tudo isso se conecta para conformar uma totalidade dinâmica, heterogênea, multifacetada, contraditória, mas ainda assim coerente em um nível global?

E talvez a questão mais importante do ponto de vista político: qual a composição da classe trabalhadora? Que tipos de trabalhos ela exerce? Como essa variedade de posições no processo produtivo geram experiências de classe distintas? Como fatores como raça, gênero e nacionalidade participam da formação da subjetividade dos trabalhadores? Onde e em que condições vivem esses trabalhadores, e que tipo de comunidades se formam nesses territórios? Quais são as necessidades e desejos mais prementes, e como estão distribuídos no corpo social? Quais são as táticas de resistências espontaneamente empregadas e as formas de lutas já em curso? Onde estão os pontos de antagonismo mais nevrálgicos, e como circular as lutas estabelecendo relações concretas de solidariedade? Que tipo de programa de transformação sistêmica pode emergir a partir dessa diversidade de lutas, e que formas organizacionais são mais eficazes para realizá-lo com base na experiência e nos desejos da classe trabalhadora? Como contribuir para articular as várias experiências de resistência e insubordinação em um movimento de massas vigoroso e politicamente ambicioso, com um grau elevado de coordenação e pretensões hegemônicas de poder?

A classe trabalhadora é diversa, seja na sua forma de nexo com o capital, na sua inserção específica no mundo do trabalho ou seja na sua posicionalidade corporal e nas experiências concretas que daí decorrem. Os socialistas não precisam convencer o povo a se rebelar: a luta e a resistência já são um fato, uma resposta espontânea frente a injustiça. O que os socialistas precisam fazer é afirmar que o povo tem razão em se revoltar, e a partir daí ajudar, de todas as formas possíveis, a converter a insatisfação privatizada em digna raiva coletiva. A tarefa política militante é colaborar para a construção da “infraestrutura do dissenso”, que aumente as chances de vitória da revolta. Os socialistas são catalisadores da articulação política, trabalhando para que as lutas se comuniquem e se reforcem mutuamente, diminuindo os custos individuais da ação coletiva.

As décadas de 80 e 90 foram um momento de derrota histórica da classe trabalhadora, marcadas justamente pela fragilização da infraestrutura do dissenso construída previamente pelo movimento operário. A reestruturação produtiva do capital e a contra-ofensiva ideológica neoliberal contribuíram para a desorganização do mundo do trabalho, a fragmentação social, o crescimento da subjetividade individualista e a crise do sindicalismo. Isso foi como tirar o chão sobre o qual estava assentada a promessa socialista: o operário-massa era a figura privilegiada do sujeito político da esquerda, cuja vanguarda estava em boa medida conectada ao trabalho organizado no mundo industrial.

A queda do socialismo real no leste europeu só serviu para aprofundar a confusão entre os militantes: a história não parecia mais caminhar para o socialismo. Com o triunfo da globalização neoliberal sob Pax Americana imperial, o clima predominante na esquerda socialista foi de desorientação. O liberalismo prometia um “Reich de mil anos”, e proclamava o “fim da história”. Uma esquerda desmoralizada se dividia entre os que queriam se acomodar aos novos tempos, na prática capitulando ao neoliberalismo, e os que se aferravam às fórmulas e formas do passado, mais nostálgicos do que orientados ao futuro.

Mas o “fim da História” também chegou ao fim. O neoliberalismo está hoje mais arraigado em nossas vidas cotidianas, mas também muito mais desmoralizado como projeto político. O liberalismo entra em crise e se abre uma época de intensos enfrentamentos de rua, em especial na juventude e nos setores mais precarizados da classe trabalhadora, que sentem na pele os efeitos das medidas de austeridade. Mas os protestos espontâneos contra a insuportável situação atual, que vez por outra explodem em poderosas conflagrações de massas, estão carregados de ambiguidade. Não estão predestinados a tomar uma direção emancipatória. Não são blocos monolíticos, puros, mas campos de luta. Há que se disputar nesse terreno de batalhas acidentado. O trabalho de agitação e propaganda recobra uma atualidade visceral. 

“‘Reforma ou revolução’ de Rosa Luxemburgo não quer dizer que precisamos escolher entre um ou outro: a resposta de Rosa é reforma e revolução.”

A responsabilidade dos socialistas é, no meio da confusão generalizada, oferecer uma direção. Agir com propósito: encontrar as demandas que possam aglutinar apoio popular, identificar as bandeiras de agitação com apelo majoritário, oferecer soluções à crise. “Reforma ou revolução” de Rosa Luxemburgo não quer dizer que precisamos escolher entre um ou outro: a resposta de Rosa é reforma e revolução. Conquistas democráticas aumentam a autoconfiança da classe. O embate por reformas é a melhor escola política para as massas em movimento. Mas sem um horizonte estratégico as conquistas são frágeis, sempre a um passo de serem perdidas.

As classes proprietárias procuram resolver suas crises empurrando os custos para o lado mais fraco: os setores subalternos, os trabalhadores e oprimidos. Lula tem razão ao afirmar em entrevista recente que: “toda vez que há um avanço na sociedade, um governo que está pensando no povo, vem a desgraça de um golpe – e com o apoio da elite brasileira, daqueles que querem tirar direito do povo trabalhador”. Mas essa não é uma falha moral. É que está nos interesses materiais da elite proprietária dar um golpe sempre que lhe pareça necessário. O que precisamos garantir é que esse mecanismo não esteja em seu poder. Parafraseando Kwame Ture, se a elite quer dar um golpe é problema deles, mas se tem poder real para dar um golpe, daí já é problema nosso.

Derrotar as condições que geraram o bolsonarismo

Bolsonaro não é um raio em céu azul. É a expressão de um projeto de classe, e responde a interesses poderosos, que se aproveitaram de uma crise econômica do capitalismo e da crise de representatividade do sistema político, dela decorrente, para abrir guerra aos pobres. Bolsonarismo é guerra de classes, pura e dura. Sua encomenda é fazer exatamente o que tem feito: passar a boiada para o capital, aumentar a taxa de exploração, forçar para baixo a participação dos salários, destruir o Estado social e proteger a ferro e fogo a propriedade privada.

“Se você está inconformado com o governo Bolsonaro, insatisfeito com as condições de trabalho, com o salário dando cada vez para menos, então você precisa ler o ABC do Socialismo.”

O autoritarismo, a boçalidade, a violência de Bolsonaro não são características casuais, e sim traços próprios da nossa classe dominante, que está convencida que a única forma de lidar com o populacho é na base da porrada. Dada a catástrofe na qual a extrema direita enfiou o Brasil, a tarefa só pode ser dupla. Primeiro, derrotar o bolsonarismo, inclusive, mas não apenas, eleitoralmente. Essa missão é emergencial, e os socialistas estarão na linha de frente. Mas a segunda parte é ainda mais difícil: derrotar as condições que deram origem ao bolsonarismo. Para isso, não vai bastar frente ampla – é necessário estratégia socialista. É só construindo poder real que vamos garantir que monstruosidades como a ditadura militar e o Bolsonaro nunca mais voltem a vitimar nossa gente. Um movimento autônomo e confiante da classe trabalhadora, articulando todas as lutas contra injustiças e opressões, é a única garantia de progresso social.

Se você está inconformado com o governo Bolsonaro, insatisfeito com as condições de trabalho, com o salário dando cada vez para menos, cansado da vida ardida de muito trabalho e poucos direitos, desesperado de assistir a fome crescer enquanto o andar de cima enriquece ainda mais, então você precisa ler o ABC do Socialismo. Se você, como nós, sonha com uma vida mais tranquila, com a chance de ter mais horas do seu dia dedicados a estar com aqueles que ama, descansando, lendo, ouvindo música, produzindo arte ou esportes, viajando e explorando novos lugares, fazendo novos amigos ao invés das intermináveis horas perdidas trabalhando para um patrão para pagar os boletos, então vamos fazer um convite: deixe de lado a desinformação e venha conhecer pra valer o socialismo. Você vai amar!

A ideia desse livro é simples: desfazer mitos, desmentir a propaganda dos patrões e apresentar de forma curta e acessível uma ideia que vem alimentando a esperança de milhões de trabalhadores há gerações. Mais do que isso, é um convite à ação. A hora urge. O momento é de pensar grande, sonhar alto e arrancar poesia do futuro. 

Sobre os autores

é diretora editorial de Jacobin Brasil.

é professor da Universidade Federal do ABC e diretor de desenvolvimento da Jacobin Brasil.

Cierre

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Published in América do Sul, Análise, Livros and Política

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